5.2.12

Pesadelo



Dizem-me que não vens. Que não regressas. E eu digo que não pode ser, que deve haver engano. Não. Insistem. Não vens, não regressas. Têm a certeza. Olho em volta porque sei que estás mesmo a aparecer. Cheira-me a torradas queimadas. Deixei queimar as torradas. Fico inquieta. Dizem-me que não tem importância nenhuma. Que se fazem outras. Mas eu queria aquelas. Aliás, nem tenho mais pão. Olho em volta porque sei que estás perto. Sinto-te aproximar. Fixo os olhos na esquina onde o Tempo se costuma encontrar com a Resistência, para namorar. Namoram tanto. Perdem-se nos olhos um do outro. Bem os vejo tantas vezes, da minha janela. Esquecem-se do mundo. Dos urgentes. Das urgências. Esquecem-se dos inquietos, dos tem de ser já. E sorriem, enquanto namoram. Sabem que toda a gente os vê ali naquela esquina, indiferentes, como se o mundo não fosse nunca a acabar. Mas acaba. O mundo acaba sempre que não há amor. Sempre que não há alegria. Sempre que o coração fica mudo, á espera de ouvir um pequeno ruído que lhe diga que alguém vem lá. Dizem que não vens. Que não regressas. E eu só me lembro das torradas negras. Do cheiro a queimado no ar. É por causa do céu escuro, bem sei.
Dizem que não vens. Que não regressas. E não se calam. Mas eu não preciso fingir que não oiço. Eu sei que é mentira. Há febre no ar. Mas não é minha. Vem de um quarto ao lado. Há uma menina. Sorri quando me vê entrar. Estende-me os braços. Acolho-a. Aperto-a de encontro ao meu coração. Ficamos assim, longo tempo a conversar. Conversa-se tanto quando dois corações se juntam. Depois diz-me para ir. Para ir onde a vida me levar. Que confia. Digo-lhe que sim com a cabeça, mas nem sei a que se refere. A febre passa, diz-me ela sorrindo. E eu sei que tenho de acordar. Mal saio do quarto dizem-me que não vens, que não regressas. Lavada em lágrimas chamo-lhes mentirosos, hipócritas, cruéis e impiedosos. Digo-lhes que tenho a certeza que já ali estás. Estás. Eu sinto. Não vale a pena falarem-me de morte. É quando se sente a vida que o pesadelo acaba.

8 comentários:

  1. De que esperas?
    Já há gente a morar em ti...dá-lhes a oportunidade de "viverem".

    Beijo!

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  2. é a tua voz que tens que ouvir :)
    escreves tão, mas tão bem!

    :)

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  3. Que essas vozes parem de se fazer ouvir, e que ouças a tua, esquecendo o passado, e vivendo com a tua filha o presente!

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  4. Perco-me na maneira bonita como encaixas as palavras...como me conduzes o sentimento por sitios turbulento mas no fim me restituis a calma..
    Inspiras-me sempre que por aqui passo.. acho que é a tua maneira serena de amar a vida*

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  5. Fantástico, como sempre.. adoro ler-te :)

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  6. "De manhã temendo que me achasses feia, acordei tremendo deitada na areia, mas logo os teus olhos disseram que não e o sol penetrou no meu coração.

    Dizem as velhas na praia, que não voltas. São loucas. São loucas".

    Lembrei-me logo disto. Belo, o teu texto.

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  7. Segue o teu coração, apetece-me dizer "Vai aonde te leva o coração", deixa-te ir.
    Adoro a maneira como escreves. Bonita como tu. Bj**

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  8. Obrigada. Muito obrigada pelas vossas palavras.

    "Já passou" :)

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