Ao contrário do que algumas pessoas que me sejam menos próximas possam pensar, não fui daquelas mães que todos os dias lia histórias para adormecer, que se deleitava a brincar ás casinhas ou adorava passar horas nos parques infantis a ver a M. entreter-se. Claro que li histórias - a M. sempre adorou livros e sempre a estimulei para a leitura - que brinquei e a levei aos baloiços, tudo isso em doses suficientes e sem qualquer contrariedade, mas seria ficcionar uma imagem de mãe ideal se dissesse que sou daquelas cujo o encantamento pela infância de um filho a fez perder a uma boa dose da sua identidade. Por outro lado, reconheço que sou de certa forma uma mãe rígida no que toca aos principios, exigente e que dá pouco espaço de manobra á irresponsabilidade. Nada disso me impede de ser afetuosa, de dar colo, presença, atenção e mimo, mas não me é, nunca foi e provavelmente nunca será fácil abdicar de uma educação baseada em orientações nem sempre compatíveis com as crises de cada idade.
Por opção, e naturalmente porque podia, a M. esteve em casa, dividida entre o meu tempo e o da avó materna, até aos três anos. Não tenho dúvidas de que esta opção foi muitíssimo estruturante e lhe deu uma boa dose de segurança, o que não quer naturalmente dizer que se tivesse ido para a cresce tivesse traumas de infância. Mas foi uma opção consciente que voltaria a ter ainda hoje.
Quando eu e o pai decidimos que chegava á nossa vida o tempo de seguir caminhos diferentes - o que ao fim de 22 anos de relação não foi uma escolha leviana nem fácil - e optámos pelo divórcio, a M. recebeu a noticia com tranquilidade e, de certa forma, até nos agradeceu. Tendo sempre em atenção as especificidades de cada idade e o que nelas, enquanto adultos, devemos preservar, a M. sempre viveu inteirada do mundo que a rodeia e sempre fizemos questão de não a educar numa atmosfera artificial, numa redoma de vidro onde tudo são facilidades e a contrariedade não existe. Os momentos de dúvida e dificuldade fazem parte da vida e é aprendendo a lidar com eles que crescemos e também moldamos a nossa personalidade. Se passamos uma boa parte do tempo a dizer aos nossos filhos que a vida não é só brincadeira e que, á medida que crescem, têm que ir também dedicando atenção á conquista dos seus objetivos, é seguramente não lhe aparando todos os golpes e não mantendo sempre a mão por baixo que melhor os ajudamos a compreender que, por muito apoio que tenhamos, crescer implica fazer escolhas e que qualquer caminho só se faz caminhando pelos nossos próprios passos.
A minha filha tem doze anos e, não é por ser minha filha que o digo, uma maturidade e sensibilidade muito especiais para a sua idade. Tenho plena consciência que, num excesso de preocupação com o seu crescimento, algumas vezes abuso disso. Já o fiz e por vezes ainda faço, mas por isso mesmo tento cada vez mais manter-me alerta para que a vantagem não se torne em desvantagem. Quando uma criança tem os seus traços de personalidade é fácil cair na tentação de exigir sempre mais e mais. Sabendo mais da vida do que ela, é minha obrigação enquanto mãe ter uma atitude de auto análise e distanciamento que me permita, apesar do grau de exigência que me é próprio, saber adequar o que sei que é importante que vá aprendendo ao ritmo natural da sua real idade. Se é bem verdadeira a frase de Eduardo Sá que diz que todas as boas mães são suficientemente más, e eu própria goste de a irritar com alguma recorrência, dizendo-lhe que para crescer bem terá de ter alguns traumas de infância, o que é facto é que é fazer uma criança crescer com ideais inatingíveis de perfeição é, mais do que injusto, um erro crasso.
Vejo demasiadas vezes os adultos de referência na vida das crianças exigir o que não fazem e assumirem-se como modelos de perfeição, sucesso e felicidade que não são na realidade. Numa tentativa de servir de modelo, falam mais facilmente sobre o que têm ou conquistaram do que dos obstáculos que necessitaram vencer e das inúmeras vezes que falharam para lá chegar. Colocam-se a si próprios num modelo de intangibilidade que, exemplo após exemplo, só vejo criar distância e incompreensão. Se quando os nossos bebés caíam e esfolavam um joelho nos baixávamos á sua altura para encurtar a distância da dor com um abraço, é importante que não nos esqueçamos de manter a mesma proximidade á medida que crescem e as quedas da vida mudam as dores de lugar. Se por cada insucesso dos nossos filhos formos capazes de lhes falar de forma genuína de algo semelhante que já vivemos, da experiência que tivemos para os tentar ultrapassar ou da forma como lidámos ou não com o nosso redondo falhanço, seremos certamente mais úteis ao seu crescimento. De perigosos modelos ideais eles já têm uma boa dose de que se alimentar, na escola, na televisão, no cinema e nas revistas.
Uma coisa é a senilidade de permitir que os nossos pequenos tiranos, que os manuais pediátricos tão bem descrevem, nos manipulem e anulem. Outra, bem diferente mas não menos grave, é pensar que são extensões de nós próprios e projetemos neles todas as nossas frustrações ou ansiedades.
Não amamos um filho apenas ás segundas, quartas e sextas, apenas nas férias ou quando não está constipado, assim como não amamos um filho apenas quando tem boas notas, quando não responde torto ou quando não tem o quarto desarrumado. Amamos um filho e ponto final. E é o facto de sabermos que somos amados, apesar das nossas dificuldades e defeitos, que faz toda a diferença. Nas nossas como nas suas vidas. É esse o segredo do amor incondicional e que tantas vezes, apesar de sentir, esquecemos de verbalizar. E um filho - qualquer um de nós - tem o direito de saber que o amor por si é ilimitado e inalienável aconteça o que acontecer. Não basta presumi-lo, há que torná-lo claro e inequívoco dizendo-o, olhos nos olhos, todas as vezes que for preciso.
Ninguém nasce pai ou mãe. Os erros fazem parte da vida. A parentalidade, por muitos bons exemplos que tenhamos tido é uma profissão para a vida para a qual não recebemos formação prévia nem temos como fazer estágio. Assim como o barbeiro que aprende a fazer a barba na cara do cliente, a relação entre pais e filhos faz-se - muitas vezes de forma dolorosa - no que de melhor e pior o método tentiva-erro nos proporciona. Valerá sempre a pena errar se do erro de uns e outros for possível colher lições, compreender e humildemente aceitar que o crescimento entre pais e filhos se faz, nos dois sentidos, ao longo de uma boa parte das nossas vidas.
Como diz o padre Vasco Pinto de Magalhães, não há soluções, há caminhos. Acredito que a única fórmula mágica para solucionar as dúvidas, neste como em todos os outros caminhos, é deixar o Amor falar. Sempre, mais alto. Entre tentativas e erros é esse, e apenas esse, que nos irá sempre salvar.