"A procissão ainda vai no adro". Neste caso, a expressão equivale a dizer que, num livro de 655 páginas, indo apenas na 97, muito há ainda para ler e beber, das linhas e entrelinhas do autor. Mas, numa primeira análise, este Abraço de José Luís Peixoto não me acolheu nem me recolheu, como de resto devem fazer todos os abraços.
Para alguém nascido em 1974, escrever em 2011 um livro recheado de memórias, parece-me, salvo o devido respeito, demasiado ambicioso. E não creio que seja sequer o caso, mas à medida que as percorria, parecia-me um mero exercicio de arquivo, com uma pitada de egocentrismo, sem grande expressão ou relevo literário. Em muitos dos textos - quase pequenas crónicas - senti-me no mero desfiar de um rosário, sem que a narrativa tivesse grande consistência ou interesse que não para o próprio ou para os que lhe são próximos. A escassez de recorte nas palavras, a falta de ritmo ou métrica poética, os textos finalizados a talhe de foice, sem um remate que os envolvesse e ligasse, deixaram-me, frequentemente, desapontada e com um sabor a pouco. A muito pouco, onde se espera muito mais. Será um estilo, dir-me-ão muitos. Será, responderei eu. Mas não aprecio particularmente.
Mas eis que nesta caminhada, que estoicamente levarei até ao fim em busca de uma viragem positiva na opinião formada, me deparo com dois textos que me fizeram revisitar uma boa parte de mim e das minhas próprias memórias. Um chama-se "Cinema". Outro "Fogo". O primeiro leva-me de volta ao cinema Londres e aquele que até hoje digo ser o filme da minha vida: Cinema Paraíso.
Nem eu nem Peixoto somos contemporâneos da realidade de Cinema Paraíso, mas quer eu, quer Peixoto fomos ainda testemunhas dela. Porque o tempo, durante muito tempo, teve tempo e demorou-se. Porque o tempo, durante muito tempo, acompanhou algumas gerações e construíu memórias coletivas que nos alicerçaram como pessoas e como tribos, numa história comum, em experiências que criavam a segurança de laços contínuos. Que bom!
Hoje, tudo mudou. E não foi o tempo. Fomos nós.
Fomos nós que acelerámos a máquina em busca de um nirvana que não está nas coordenadas que introduzimos no gps com destino à Felicidade. E estamos a descobri-lo, a penosos juros e a penosos passos, numa caminhada que ainda se adivinha longa.
Nada neste pensamento se opõe ao cinema 3D, em confortáveis cadeiras. Mas talvez não fosse necessário - não era! - matar as nobres salas de cinema das pequenas e grandes cidades. Talvez nada impedisse - nada impede! - que com as novas tecnologias convivesse o cinema ao ar livre, em noites de Verão, nas velhas praças das pequenas vilas do interior, com os velhos pelourinhos como testemunhas.
Se outro mérito não lhe encontrar neste livro, Peixoto levou-me de volta a uma banda sonora que me transporta para outra dimensão e a um filme que fala de tudo o que é o Amor, nas suas mais diversas facetas, ao longo da vida. Só por isso, já lhe fico grata.
Cinema Paraíso não é um filme sobre uma sala de cinema. É um filme sobre o filme de tantas vidas, na presença e ausência de afetos. Nas descoberta e na perda deles, nos encontros e desencontros que nos proporcionam.
Cinema Paraíso é uma discreta mas sábia ode à vida.
As palavras de Peixoto, seguidas da cena final de um filme que só quem viu percebe o quanto nos marca. A mim, para a vida. E choro, sempre que a revejo, com o espanto e a emoção que a chorei a primeira vez.
(...) "A sala onde passavam os filmes era a mesma onde, de vez em quando, havia bailes. Alguns anos mais tarde, haveria de ser a nossa sala, onde iria aprender as minhas primeiras notas. Primeiro, o solfejo desenhado no ar com o indicador: dó-ó-ó, ré-é-é. Depois, um saxofone antigo, a sofrer durante semanas até ao inicio da primeira melodia. Nessa mesma sala, aos sábados, na parede do fundo, estava um lençol estendido. Depois, filas de cadeira de madeira, as mesmas cadeiras que, durante os bailes, ficavam encostadas às paredes para as mães das raparigas se sentarem. Sentávamo-nos conforme íamos entrando. Não havia lugares marcados. Durante o filme, os rapazes mais velhos davam-nos palmadas por trás da cabeça. Toda a gente falava em voz alta durante o filme, mas eu ficava concentrado a olhar para as imagens riscadas que passavam no lençol. Um feixe de luz, desenhado na escuridão das portadas fechadas das janelas, passava pelo corredor das cadeiras e estendia chineses a lutarem no lençol da parede da Sociedade" (...)