17.1.14

Da manhã em que nevou [no Portugal dos Pequeninos]







Nem chegava a ser neve, apesar das zonas em que a altura e a espessura estavam muito próximas da sua consistência. 
Para quem, como eu, andava a pedir a S. Pedro um cheirinho de branco em Lisboa, soube bem. A borrasca de trovoada e chuva forte que se abateu sobre Lisboa desde as 2h da madrugada acabou por culminar num episódio de intenso granizo, mais ou menos localizado, e capaz de deixar algumas zonas da grande Lisboa com ares de capital habituada a tempestades do género. Mas neste caso, só no aspeto, porque a verdade é que nos mais pequenos detalhes nos afirmamos e confirmamos no caráter provinciano que temos. 

Se é verdade que não estamos habituados a dias assim, não é menos verdade que um episódio como o de hoje não provoca mais do que alguns atrasos no relógio ou demora no trânsito, mais por força da curiosidade do que por algum perigo real ou digno de registo.

Sim, é verdade, houve zonas que pareciam pequenos retalhos da Serra da Estrela, mas nem isso é novidade. Não acontece todos os anos, mas ciclicamente, quando o rei faz anos, este é um cenário com que nos deparamos e só mesmo a senil e fraca memória deste povo é que faz com que dias como o de hoje pareçam fruto de um pré aviso de fim de mundo. 

"Nunca se viu nada assim" é a frase de ouro. A pérola debitada com ar de suprema solenidade e sabedoria.  A mesma que refletiu a mesma pequenez e curta memória nas observações sobre as ondas que deram à costa há quase 15 dias. Meus senhores, 43 anos acabados de fazer tenho eu e lembro-me de pelo menos uma mão bem cheia de episódios iguais ou superiores. 

E depois o maravilhoso e admirável mundo dos senhores dos canais de televisão... a perguntas inteligentes, a conclusões pertinentes... um mundo, senhores! Todo um mundo de relíquias jornalísticas. 

Numa avenida de Carnaxide, filma-se a retroscavadora a afastar o gelo da estrada e o circo monta-se. Ele são os reformados do clube do "nunca se viu nada assim", pasmados com o cenário cataclítico; ele é a criancinha que não vai à escola porque "está um frio de rachar" e a rua - AQUELA RUA E APENAS E TÃO SÓ AQUELA RUA, SENHORES, ACREDITEM-SE NO QUE DIGO PORQUE PASSEI LÁ E VI E NÃO FOI PARA VER, FOI SÓ PORQUE ME CALHAVA EM CAMINHO!!! - estava com um altura de gelo que necessitava por precaução e necessidade de circulação ser retirada para a berma. Falamos de um trajeto de 100 metros, se tanto e de um trabalho que terá demorado 1 hora, se tanto. Não esquecendo que TODAS as ruas à volta estavam circuláveis, quase como se nada tivesse acontecido. Eu vi, ninguém me contou!

E eu, que entre o pasmo e a incredulidade sou uma mulher de fé, dou por mim a pensar que Deus Nosso Senhor sabe mesmo o que faz. Um povo assim tão triste e tão pequenino tinha de ser abeçoado com um clima e um território fora da rota das grandes desgraças. Se por episódios como estes as criancinhas faltam à escola, ou voos do aeroporto atrasam, o pessoal se benze e a proteção civil alerta para a necessidade do uso de correntes de neve, Deus Nosso Senhor nos livrai do dia em que acordarmos mergulhados num estado de calamidade.

Bem sei que o país não é Lisboa [graças a Deus, digo eu!] mas é aqui que, para dentro e para fora, quer queiramos quer não, nos afirmamos como povo. De episódios e reações como a de hoje, devíamos, mais do que ter vergonha, ter capacidade analítica e crítica sobre o que espelham de nós.

A verdade é que este era só um post sobre o prazer que me deu ouvir o ranger do gelo debaixo das botas e do gozo que me deu rever um bocadinho de paisagem branca, mas esta malta dá-me cabo da poesia, deita por terra a minha esperança de que algum dia saiamos do estado de letargia em que estamos afundados e quase me mata os prazeres bucólicos.

4 comentários:

  1. Lindas as tuas fotos ;)

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  2. Somos um povo virado para a desgraça e para as catástrofes... tudo é um problema, tudo é terrível. Não sabemos viver, daí termos sido abençoados por um país cheio de mar e sol.

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  3. Partilho em tudo o que foi dito. Por acaso moro na Parede e os meus pais em Carnaxide, sim aqueles dois sítios tão noticiados, em que o cataclismo nos afectou sobremaneira...e depois, vejo à noite as notícias dos incêndios na Austrália e uma senhora que acabou de perder a sua casa e o seu comentário: 'Fazer o quê? Vou começar de novo...' Bolas, somos um povo tão fatalista e ainda não aprendemos a lidar com a nossa própria fatalidade.

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  4. Ah, ah,ah, soube-me mesmo bem ver esta descrição daquilo que nós somos. Fosse eu falar assim, e ouvia logo sermões de patriotismo. Somos ainda um bocadinho provincianos, é o que é...

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