7.8.24

Morremos como vivemos

 


Esta foi, provavelmente, a frase mais impactante para mim, no que se refere a uma síntese muito pragmática, e simultaneamente sábia, sobre o fim da vida.

Infelizmente, sei-o por experiências próximas. E digo infelizmente, não pela negação da morte, mas pela tristeza de ter visto partir desta vida duas das pessoas mais importantes e próximas de formas que não foram de todo pacíficas. Por muitas razões, não me alongarei nos detalhes destas duas histórias, mas sei quanto são reflexão, integração e conhecimento empírico da profundidade desta frase: morremos como vivemos. Ponto final.

Naquele que é, seguramente, o tema mais tabu da sociedade ocidental - ainda tão cheia de temas tabu, em que a sexualidade ou a saúde mental são apenas mais dois deles no meio de um infindável rol de outros assuntos que continuamos a varrer para debaixo do tapete ou a fechar em cantos de armários escuros - importa cada mais reforçar que, sendo a morte inevitável para tudo o que vive, é na forma como escolhemos viver que ela se alimenta e se suporta. Falo, claro está, da forma como nos cuidamos, integralmente, ao longo da vida. Das escolhas que fazemos, desde o que comemos até às pessoas que nos rodeiam, passando pelas ações ou omissões a todos os níveis. A escala não está na definição de vidas perfeitas. Antes pelo contrário, está na escolha genuína e consciente do que queremos para nós. 

Já praticamente ninguém põe em causa a máxima "somos o que comemos" mas, no que toca às decisões de fundo sobre a forma como vivemos, parecemos insistir na negação da relação direta que têm com o desenrolar do fim de vida. 

Este ano, num dos muitos objetivos que tracei para a minha vida e para o meu desenvolvimento pessoal, inscrevi-me num curso de doula de fim de vida. Eis que muitos abanam, ao ler esta designação! Que coisa mórbida, excêntrica ou tétrica será esta, em que se fala, estuda, analisa e integra a morte, como uma parte indissociável da vida?... A quem se questione, deixo o espírito de pesquisa e descoberta por si. A função desta partilha não é, de todo, essa. As razão deste texto é outra, mais profunda e ao mesmo tempo mais simples. É fruto de um caminho de crescimento e de certezas e sim, também, de muitos silêncios povoados de ruídos internos que pedem para ser escutados (agosto parece ser, há muito na minha vida, o mês privilegiado para estas escutas internas) Há todo um caminho menos percorrido por todos os que me antecederam e que não pretendo deixar como legado para os que me sucederem... 

Esta fotografia não é de um banco de imagens. Entre todos os que nela posam, dois estão ainda vivos (que bom, querida tia e querido tio!). Os que já partiram, estão bem presentes em todos nós. Seja pelo ADN herdado, seja pelas histórias vividas, mesmo na sua ausência. Dispenderia algumas horas a discorrer sobre tantas coisas possíveis de partilhar sobre como cada um deles, mesmo os que não conheci, como o o meu bisavô e a tia mais nova que morreu, pouco tempo depois desta fotografia ter sido tirada pelo meu avô, o filho mais velho desta prol.  Todos eles têm uma história vivida ou escutada, que vive dentro de mim. 

Sim, sou orgulhosamente descendente de uma linhagem rural, em ambos os lados da família. E sou capaz de identificar cada célula dessa prodigiosa herança na forma como tenho vivido. É também cada um dos seus elementos que me faz escolher em consciência o caminho que quero continuar a percorrer. Olhar e honrar, sobretudo não esquecer. Sem conectarmos todos os pontos da nossa imensa e riquíssima história somos pouco mais do que um ponto perdido no nosso próprio mapa. Mas há quem teime em duvidar desta simples evidência...

Morremos como vivemos. Metáfora? Poesia? Seja. Para mim, certamente, a escolha de um caminho cada vez mais leve no dia a dia para que a vida, em vez de ser breve ou desperdiçada, seja tão longa, proveitosa e prazerosa quanto possível. Já diz a música... Solo se vive una vez (pelo menos, até ver).

2.8.24

É Verão



Precisamos de caminhos mais estreitos. Estradas secundárias, dois sentidos apenas. Bermas curtas, onde logo em seguida começa o campo, olhos postos no horizonte, onde se ergue e deita o sol. 

Precisamos de percursos menos longos. Curtas distâncias. A doce aventura que experimentávamos na infância quando percorríamos caminhos novos, sempre a descobrir tesouros que nos demoravam a ponta dos dedos e distraiam saudavelmente a mente, vagueando na curiosidade, atrasando o passo e acelerando os sonhos.

Precisamos de reatar relações com os cheiros, os sabores, as cores e os sons dos verões de outrora. A pele na pele. A da casca da árvore onde nos balançamos, a do pêssego colhido quente do ramo, a da água fresca que os pés experimentam no regato, a do gato bebé recolhido no regaço. A dos reencontros.

Precisamos de reconcilar-nos com quem fomos, as histórias que trazemos, os presentes e os ausentes que nos habitam. As palavras ditas. As mal/ditas e as bem/ditas. Muitas estórias, outros tantos contos.

Precisamos de desatar os nós, de desabafar os ombros e de espreguiçar as emoções. Precisamos da rede que nos balança, que nos ampara e que nos suporta. Que nos concede o sono.

Precisamos de olhar o calendário e de sentir que pertencemos exatamente a onde estamos. É na madureza do ano que encontramos a maturidade de quem somos. 


6.9.21

Sandra Casaca | As mãos na massa da vida

Foi há mais de três meses que este (re)encontro aconteceu.

Se preciso de provas de que o ritmo dos meus desejos e o da capacidade de os colocar em prática já não é o mesmo, esta é uma delas. Mas não é de hoje que sei e digo que tudo tem o seu tempo e que a Vida lá sabe, e nos vai dando pistas dos porquês e para quês de certas coisas a que, na nossa visão finita de tempo, chamamos "demoras". No meu caso, sei que acabo sempre por colar as peças e perceber, o tempo e os tempos do Tempo, na minha vida.
Este é, portanto, o tempo certo para esta sua partilha.

Sobre a Sandra. E uma nota prévia, neste regresso:

O meu namoro com a sua arte começou há uns bons anos, quando a descobri num mercado. De certa forma, simbolizou um rito de passagem na minha vida com uma das peças que mais significado tiveram para mim nos últimos anos. A prova, está aqui.
De lá para cá, desencontrei-me muitas vezes dela, mas nunca a perdi de vista. 

Quando o Project#6 se iniciou, sempre soube que ela seria uma das convidadas. Quando parou, ficou sempre em mente o retorno, ainda que ano após ano adiado. 
Tenho uma relação complicada com os compromissos. E os que estabeleço comigo não são exceção. Por isso, sei que se não fecho uma porta de uma vez por todas - e nunca o fiz, com este blogue - há uma vozinha interior que ciclicamente me bichana e cobra as demoras, e um bichinho roedor que me mordisca os calcanhares, para me apressar... 

Depois de um último post publicado a 6 de junho de 2018, este Maio trouxe-me um raio de sol, uma energia motora, que renovava a vontade de deitar mãos à obra e regressar a este canto mais intimista. O meu ser criativo e criador, comunicativo e escavador de histórias que nos tornem mais humanos, precisa de recantos assim, onde possa tagarelar com lados bons e bonitos da vida ou desmonta-los em peças, para perceber melhor alguns dias de sombra. Os meus e os dos outros.

No dia 26 de Maio, rumei a Oeste ao encontro do barro com que a Sandra molda os seus dias.
Tive o privilégio de mergulhar os sentidos nas mil histórias, cheias de detalhes, que se escondem em cada recanto que habita. Da sua casa ao atelier, em tudo há viagens. 

Agora, finalmente, são vocês os convidados desta viagem ao passado, presente e futuro da vida e do barro, ou seja, da essência. Afinal de contas, não é dele/dela que todos somos feitos?

Sandra Casaca, é a Senhora que se segue. 





 Sandra, fala-me um pouco da tua formação e do que te trouxe até a este adorável mundo artístico da cerâmica.

Olha, a minha incursão na cerâmica nasceu de uma empatia natural com o barro, matéria  muito plástica, orgânica e terapêutica. Na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, frequentei as  oficinas de cerâmica, e o encontro com a Virgínia Fróis, professora de escultura, estimulou ainda mais a minha aprendizagem neste domínio. Quando terminei a licenciatura em Escultura, frequentei um estágio em cerâmica, nas Oficinas do Convento e Telheiro da Encosta do Castelo, em Montemor-o-Novo, o que enriqueceu e alargou ainda mais o meu conhecimento prático e processual da cerâmica. Apaixonei-me pelo processo, apercebi-me da sua vasta dimensão e da inesgotável descoberta que proporciona.





Tens um longo e bonito historial ligado a esta área, inclusivamente, com mostras e exposições. Sentes que Portugal tem um público sensível e recetivo aos artesãos? Ou seja, achas que o nosso "mercado" valoriza devidamente esta forma de arte?

Tenho denotado ao longo destes últimos anos, uma crescente recetividade do público à valorização dos objetos manufaturados. Atualmente, o panorama pandémico, veio alertar para um consumo mais consciente e talvez isso ajude na transformação das mentalidades e na dignificação do trabalho do artesão. Mas o artesão também tem um papel preponderante nesta mudança, no sentido em que não cedendo à competitividade e ao mercado que nivela os preços das peças por baixo custo, atribui o devido valor às suas obras.


 


     De que barro és feita?

     Sou feita de uma miscelânea de barros.

E dos 4 elementos, com qual ou quais te identificas mais?

 Ar

Água

Fogo

Terra

Porquê?

Partindo do pressuposto que estes 4 elementos são primordiais à vida, identifico-me com todos porque são elementos constituintes do meu ser.

E das 4 estações? Porquê?

Costumo dizer que num dia sucedem-se as 4 estações no meu estado de espírito, e por sentir que estas são constante presença em mim, não consigo identificar-me com uma ou algumas em particular.



         


          És mulher de meter a mão na massa?

    Sim e também de atirar o barro à parede! (risos)

 




        Achas que há uma arte no feminino e uma arte no masculino ou não há diferenças. Porquê?

      Para mim, géneros feminino e masculino na arte fundem-se, por isso é difícil identificar e balizar essas diferenças.

 





O que é a estética, para ti, enquanto conceito e forma de vida?

A estética é um conceito que tem para mim uma relação muito direta com a ética. Estes conceitos integram-se no meu quotidiano, nas minhas ações diárias, na relação com o outros e regulam o meu equilíbrio com o mundo.



 


Se te pedissem para moldar o futuro da humanidade, que forma lhe davas?

A forma da esfera, pois esta simboliza a harmonia progressiva do espírito e do seu aperfeiçoamento, essenciais para o crescimento sensato do ser humano.







    Enquanto conversamos, fizeste pão, com todo o preceito. Fala-me um pouco do que significa este processo e que relação e implicação tem com a arte do barro e da cerâmica?

Interesso-me por aprofundar o meu conhecimento teórico e prático, na relação que existe entre a origem da confeção dos alimentos e a origem da cerâmica. Muito antes da sedentarização e da agricultura, segundo vestígios recentemente encontrados, os povos caçadores-coletores, esmagavam os grãos de cereais silvestres com uma pedra para fazer a farinha, a qual peneiravam, amassavam com água e ferviam no fogo para fazer uma espécie de pão achatado. A farinha é um dos ingredientes mais antigos, obtida pelo processamento direto de um recurso natural. A cerâmica tem um processamento análogo, usando o recurso natural que é a terra. A relação intrínseca destes processos, direcionam agora o meu trabalho cerâmico, na procura dos recursos naturais à minha volta, e numa experimentação mais intuitiva e próxima das origens da cerâmica.






✩ fim ✩

24.5.21

Deixa { re } entrar o Sol


 
O Deixa entrar o Sol vai regressar. Pelo menos, esse é o desejo que trago embalado no coração há algum tempo. Como sempre na minha vida, sou de dar tempo ao tempo, para que ele arrume os desejos, os projetos, os avanços e os recuos na consistência dos dias e para que, depois de os iniciar ou reiniciar, não caiam por terra e voltem à casa de partida ou se esfumem, definitivamente.

Há coisas, formas de ser e estar, que a vida vai moldando com o tempo. Arestas que são limadas e outras que, ao contrário, se tornam mais aguçadas das esquinas e dobras das nossas almas. Mas outras há que permanecem imutáveis. A essas chamamos Essência. E na minha essência mora sempre esta ponderação silenciosa, que muitas vezes parece esquecimento ou alheamento, mas que na realidade é um processo de maturação fermentada. Depois, ou vai, ou racha. Como não é percetível aos outros - a não ser que me conheçam o avesso e saibam interpretar os meus sinais mais subliminares e, acima de tudo, os meus longos silêncios sobre alguns temas - muitas vezes, parece que um passo, uma decisão, surgem do nada, fruto de um ímpeto, capricho ou espirito aventureiro. Nada mais longe do que sou ou faço. E se nada em mim é estudado ou demasiadamente preparado, pode até parecer uma incoerência em dizer que não nasce de um impulso. Mas são universos diferentes, paralelos, para mim. Um nasce da necessidade de controlar tudo, de tentar atingir sempre o patamar de uma certa perfeição, nem que seja aparente, com que não me identifico. O outro, o meu, nasce da necessidade de antecipar riscos e no topo deles o do assumir e poder quebrar ou não um compromisso. Antes de mais comigo. A vida é uma constante gestão de expectativas. Há que se honesto e comprometido com os nossos propósitos porque, no fim da linha, eles mexem com os dos outros e há uma enorme dose de responsabilidade nisso.

Regressar ao blogue não tem uma missão tão nobre, nem tão relevante, que se aplique ao que acabei de dissertar, mas tem em mim o impacto de uma decisão de fundo: regressar à escrita e à partilha de imagens que me conduzam ao reencontro de uma Margarida que hibernou há algum tempo.

Muitos fatores contribuíram para esta decisão. Desde o recorrente desafio de família e amigos, até ao reencontrar de "coisas" antigas, como ainda ontem aconteceu, ao descobrir numa pen uma entrevista de rádio pela ocasião da publicação do meu segundo romance... Foi chocante e comovente, ouvir aquela pessoa que era eu e sentir que tudo aquilo tinha sido noutra vida, tanto que já nem recordava uma boa parte do que nela mencionei... Alerta vermelho, para uma alma criativa e criadora, como a minha... "Está na hora de ires ao teu encontro, Margarida", pensei.

Esta manhã, quando amadurecia a ideia do texto desta publicação, percebi ainda que existe um motivo tão ou mais importante neste regresso: o legado que quero deixar à minha filha; o gosto e o respeito pela palavra; o valor e a relevância da comunicação; a importância de crescermos na partilha saudável de experiências de vida; a gratidão por através de tudo isso nos revermos ou ampliarmos com e nas histórias de quem se cruza connosco. E ela, que escolheu a Comunicação como forma de vida, perceberá cada vez melhor o que digo e sinto, quanto a estas questões. 

É também por ela e para ela que regresso a esta minha querida casa e que retomo o #Project6. Neste regresso, com outro nome " A vida dá um livro". Porque não raras vezes a realidade ultrapassa a ficção. E porque nenhuma história nasce do vazio. 

Esperança tenho eu que, ao alimentar-me das histórias das minhas "convidadas", um novo enredo, feito de linhas e letras, se construa dentro de mim. 

Até breve!

Margarida


6.6.18

Rita Rito | Gestora de Saudades e Mulher Guerreira

Há muitos, muitos anos, foram os nossos blogues que nos juntaram. Durante algum tempo fomos, à distância de posts e comentários, acompanhando a vida uma da outra, até que, um dia, com o abrandamento da presença de ambas nesta rede social, o contacto se perdeu.

Algum tempo mais tarde, algures por 2013, emoldurado em detalhes que não recordo com exatidão, deu-se um reencontro virtual. De lá para cá, não nos largamos mais e, recentemente, com a ajuda de facebook e do instagram, o contacto é quase diário.

Temos até hoje adiado um abraço redondo e apertado. Apesar de tudo sabemos que, de dia para dia, esse abraço demorado está cada vez mais perto de acontecer.

A conversa de Junho é uma conversa muito diferente de todas as que a antecederam. Pela ausência de proximidade física, pelo facto de as fotografias terem sido enviadas por si (lindas! obrigada, minha querida!) e, muito, muito, pelo especial foco que foi dado a uma fase da vida desta minha última convidada. 

Por todas as razões do mundo, sinto-me imensamente honrada e grata por ter aceite imediatamente o meu convite.

Rita Rito, é a (doce)  Senhora que se segue.




És uma Mulher do Norte (gosto tanto das Mulheres do Norte!). Tens Braga por berço e hoje vives na Suíça. O que é que motivou esta mudança? Há quantos anos te mudaste? Fala-me um pouco do que aconteceu e mudou na tua vida nestes últimos anos.

Vivo na Suíça há 6 anos, 6 longos anos. Costumo dizer que emigrar aos quarenta, tinha 38 anos na altura, não é a mesma coisa que emigrar aos vinte, trazes toda uma vida contigo.
O real motivo da minha mudança foi o mesmo que leva tantos Portugueses a deixar a sua casa: pura necessidade. A verdade é que uns anos antes já cá tinha estado, mas não aguentei mais de 6 meses longe dos meus filhos. Voltei a Portugal numa tentativa de “recuperar” uma vida que há muito havia perdido e nessa altura entra o nosso país na dita crise...
Estive mais três anos por Portugal, quase sempre com trabalho, mas numa situação precária, de contratos a termo ou recibos verdes, com renda para pagar e dois filhos. 
Não foi de todo fácil, aliás, confesso que foi o meu filho mais velho que me incentivou a voltar à Suíça. 



Como foi a adaptação? Presumo que os suíços sejam muito diferentes dos Bracarenses. 

A primeira vez que saí de Portugal estava numa relação com o Miguel, com quem casei o ano passado, e que tem sido o meu apoio nestes últimos anos em tudo. Foi fundamental para mim ter o Miguel ao meu lado porque de facto a Suíça é muito diferente de Braga. A saudade é uma coisa muito nossa e tão difícil de gerir, os primeiros tempos foram duros. Os meus filhos são a minha saudade mais difícil e também a melhor. Ao mesmo tempo, são a força que precisei para aguentar e adaptar-me.
Como agora eles também são adultos é um bocadinho menos doloroso, mas sinto a perda de cada chegada e partida. Estas perdas transformaram-nos, acredito que este afastamento os ajudou a crescer mas, bem no fundo de mim, sei que os marcou, marca e marcará para sempre. É uma estranha forma de vida esta, no entanto, são estes filhos que me dão a força que preciso para continuar, espero também eu conseguir dar-lhes alguma.
Quanto aos Suíços, é um povo muito culto e de uma educação esmerada. 
Na Suíça encontrei paz, creio que em Portugal corremos todos demais, nós próprios criamos o nosso stress. Na Suíça as coisas estão de tal maneira organizadas que não vives constantemente sob pressão e há tempo para tudo. 



Tens toda a tua familiar nuclear em Portugal. Como é que se gerem as saudades, à distância?

Na verdade não se gere, vai-se gerindo, é um constante buraco aberto no peito, um desassossego permanente. Sempre que um telemóvel toca fora do horário habitual e vemos um número dos nossos, é um sobressalto.
Sou imensamente grata aos inventores destas novas tecnologias que nos permitem ver os que amamos e que encurtaram as distâncias. Não tens o abraço é verdade, mas ao mesmo tempo penso que se estivesse em Portugal não estaríamos tão presentes nas vidas uns dos outros. Eu e a minha mãe falamos diariamente e várias vezes por dia, por exemplo. 


O que é que mais gostas de fazer, quando regressas? Pensas regressar de vez, algum dia?

Sinceramente e com o intuito suavizar a nossa conversa, a primeira coisa é beber um café bem português, normalmente ainda no aeroporto.
Gosto de abraçar, tenho muitos abraços sempre a minha espera e é tão bom. Sou muito de abraços.
Com o tempo fui apurando e aprendendo o que gosto de fazer sempre que vou. É preciso estabelecer prioridades, porque o tempo é um ladrão que rouba tempo ao próprio tempo.
Adoro estar com os meus filhos, ir a casa do meu filho mais velho e dar colo ao mais novo, estar com os meus pais e irmãos, quando conseguimos conciliar, porque tenho um a viver em Londres e outro em Lisboa. 
Estas são as minhas prioridades. A minha mãe, além de mãe sempre foi e continua a ser a minha melhor amiga. Saímos muito, passeamos, fazemos almoços a duas, vamos às compras juntas, somos confidentes. A minha mãe, como costumo dizer, é a melhor pessoa do meu mundo.
Depois gosto de jantaradas com os amigos, conhecer novos restaurantes, come-se sempre tão bem nesse país. Também depende da altura do ano. No Verão aproveitamos sempre a praia e as esplanadas à beira mar. No Inverno experienciamos outras actividades, mas seja qual for a altura do ano, a família tem sempre prioridade. Vir a casa é regressar à cidade e à casa onde sou sempre feliz, muito feliz. Acalmo o coração e tento aproveitar tudo ao máximo, dou e recebo amor.
Vir a casa é ter mais tempo para mim e para os meus, aproveitar este tempo tão nosso e renovar forças.



Quando te desafiei para esta conversa, propus-te que falássemos de um assunto difícil, íntimo e ainda de certa forma tabu para muitos de nós. Aceitaste e toda a admiração que tenho por ti, há tantos anos, conseguiu aumentar ainda mais. Mais do que fazer-te perguntas sobre o que sentiste e sentes em relação ao caminho dos últimos meses, gostaria que fosses tu a abordar o tema. Primeiro porque acredito que, de certa forma, cada pessoa que vive esta situação a vive física, psicologicamente e emocionalmente de forma diferente. Depois porque também acredito que hoje compreendas profundamente que mensagem é importante transmitires a quem esteja a experienciar o mesmo cenário que tu, seja por o estar a viver na primeira pessoa, seja por ser familiar de alguém que o está a viver.

A palavra Cancro assumiu um papel real na tua vida. Como tem sido viver isso, na primeira pessoa?


Tem sido uma longa e difícil caminhada. Um choque brutal que transformou as nossas vidas para sempre e que nos fez repensar tudo. O cancro não escolhe nem discrimina, é uma doença que pode afectar qualquer pessoa, embora pensemos verdadeiramente que só acontece aos outros. Damos a vida como garantida até ao dia em que percebemos que estamos a prazo, que podemos morrer. Ser confrontado com esse finitude é devastador. Lembro-me perfeitamente do dia em que me deram o diagnóstico: parecia que tudo tinha perdido a cor, o azul do céu ficou cinzento, naquele momento parecia que via tudo a preto e branco. Estava em choque. E esse foi o só o primeiro diagnóstico, dizerem-me que tinha cancro da mama. Seguiram-se dias confusos, sem saber bem o que me estava a acontecer, carregados de idas ao hospital e de exames para confirmar o diagnóstico. Foi tudo vivido a dois, entre mim e o Miguel, porque não queríamos alarmar ninguém antes de termos certezas. Costumo falar com a minha mãe todos os dias e naquela altura deixei de o fazer. Não conseguia simplesmente agir como se nada se estivesse a passar. Há outro motivo muito forte para ter adiado a conversa. A minha avó materna morreu com cancro da mama, tinha a minha mãe 16 anos. Não podia dar-lhe uma notícia destas, via skype, sem um diagnóstico seguro. Na consulta seguinte disseram-nos que faria uma mastectomia e o Miguel achou que era hora de comunicar à minha família. Tremia toda, a voz tremia-me, sentia-me como se estivesse engasgada, com uma bola na garganta. A reação da minha mãe, o pânico quando lhe disse que era cancro, foi tudo muito difícil. Não há formas fáceis de dar uma notícia destas. Seis dias depois estávamos abraçadas no aeroporto. Em lágrimas. Veio a pior das notícias, o dia mais difícil da minha vida. Tinha realizado uma TAC e o médico perguntou-me se alguma vez tinha tido alguma queda, algum acontecimento que justificasse uma mancha que apareceu na coluna. Disse que poderia ser uma lesão antiga e lembrei-me de há muitos anos ter caído nas escadas em casa dos meus pais. Assumi que seria isso, a tal lesão antiga, mas dias depois do primeiro diagnóstico a médica, com as lágrimas nos olhos, deu-nos finalmente a notícia que mudou a minha vida: tinha um cancro de mama metastizado nos ossos (grau IV). Perguntei quanto tempo tinha de vida. Não me lembro de muito mais. Dias depois chegou um telefonema a dizer que afinal não iria ser submetida a uma cirurgia. Num colóquio entre oncologistas para estudar o meu caso, decidiu-se que iria começar um tratamento em Friburgo com um médico que vim a perceber que era o diretor do serviço de oncologia. Com o cancro espalhado, a cirurgia já não era uma solução. Ia ser seguida por uma equipa multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiras responsáveis por me administrarem os tratamentos, e até assistentes da Liga contra o cancro. A minha vida seria revista em função da minha doença a todos os níveis, posso dizer-te até financeiramente. O cancro muda todas as regras. Tínhamos, como te disse, um projeto de regressar a 6 anos, mas a doença acabou por suspender os nossos planos. Um cancro metastizado não tem cura, é uma doença crónica, que implica um acompanhamento a cada 2/ 3 meses, novos exames e ajustes nos tratamentos. Hoje vivemos um dia de cada vez. Fui obrigada a parar o meu negócio próprio, está em stand by. As metástases na coluna causam dores horríveis e impedem-me de trabalhar. Por outro lado, deixam-me angustiada, ansiosa perante os novos exames e a possibilidade de um resultado menos bom. Tem sido uma luta diária com muitos altos e baixos, a palavra Cancro tem uma conotação pesada, ainda é tabu falar tão abertamente desta doença. Percebi-o ao longo destes oito meses de doença. Mas tem sido também uma aprendizagem, um auto-conhecimento, o que pensava ser uma sentença de morte passou a ser para mim uma lição sobre a vida, daí partilhar a minha vida nas redes sociais, por exemplo, e ter aceite o teu convite, que muito me honra, para esta entrevista. Espero conseguir transmitir a outras pessoas, mulheres ou homens, que podemos viver de mãos dadas com esta doença. Acima de tudo que é possível reduzir a possibilidade de vir a ter um diagnóstico destes. 



Felizmente, há cada vez mais pessoas a falarem abertamente sobre este assunto - muitas delas figuras públicas - e algumas campanhas - uma delas bastante recente - têm contribuído para que se torne de certa forma mais leve abordar uma doença que tanto peso traz para o próprio e para as famílias. O que achas que há de positivo e o que achas que se podia fazer mais?

Felizmente que há mais pessoas a falarem abertamente, como já disse, só a palavra cancro traz consigo tudo o que de mau possamos pensar, mas na realidade e por muito mau que seja, que é, felizmente há outras pessoas além de mim a encontrarem coisas positivas num diagnóstico de cancro. Aqui há uns meses eu dizia que sou muito mais feliz agora do que era há oito meses atrás e é verdade sabes. Aproveitas a vida tal como ela é, dentro das possibilidades que tens, com verdade e autenticidade, sem desculpas ou subterfúgios para fazer ou deixar de fazer seja o que for. 

Hoje conheço a realidade do serviço de saúde Suíço a este nível, tanto quanto sei, bem diferente do sistema nacional de saúde Português. Por tudo o que tenho lido e visto nas noticias, pelas campanhas que vou acompanhando, julgo haver ainda muito a fazer, mas também considero que estas ultimas campanhas que tenho acompanhado são fortes, verdadeiras e bem direcionadas, pondo o cancro tabu de lado e olhando de frente esta doença que tantos afeta e isso é muito positivo.




As fotografias que enviaste para acompanhar esta conversa são extraordinárias. Pela beleza e pela força que revelam. Pela verdade e pela Luz que transmitem. Diz-se muitas vezes que manter um pensamento e comportamento otimista perante esta doença é determinante em muitos aspetos, nomeadamente na conquista de resultados positivos em cada etapa. Qual é a tua opinião?

É fundamental conseguir manter um pensamento positivo e otimista, não é sempre fácil, mas é fundamental sim. É muito importante manter o foco, criar alguns objectivos, coisas simples, nem que seja impor-nos uma simples caminhada diária. Eu tenho um apoio incrível, tenho o Miguel, que tem sido a minha força. É preciso acreditar, para acreditar tens de ter Fé. Eu resgatei a minha Fé e apoio-me nela e neste amor que me ajuda todos os dias a trocar lágrimas por sorrisos. Acredito também que esta minha forma de estar perante a doença, o apoio incondicional da minha família, a minha atitude face a tudo o que tenho vivido, foram responsáveis pelos resultados positivos que tenho tido.





Pessoalmente, e creio que esse é um sentimento geral, tenho a maior admiração por todos quantos passam por um desafio destes e mantêm um espirito guerreiro e inconformista. Acredito, verdadeiramente, que o caminho é por aí. Mas, ao mesmo tempo, sinto muitas vezes que o pensamento coletivo tende a ser demasiado exigente e até muitas vezes desajustado quando cria a expetativa de que um doente de cancro afaste sempre todos os fantasmas e não tenha dias maus. Como se no fundo precisássemos todos disso, dessa atitude desassombrada, para exorcizar os nossos próprios medos e aliviar o nosso contacto com a dor de quem o vive. E tudo isso parece-me altamente injusto. O doente de cancro, como qualquer doente, como qualquer pessoa, tem o direito a sentir tristeza, desânimo e dúvidas, não tem? Sentes que de alguma forma as pessoas com cancro sentem necessidade de camuflar tudo isso para não serem rotuladas ou para que os outros se sintam mais confortáveis em apoiá-las?

Essa pergunta é verdadeiramente interessante.
Claro que os doentes oncológicos não só têm direito a sentir tristeza, dúvidas, medos, como o sentem verdadeiramente, ainda que o sintam numa solidão que não consigo descrever. 
A minha mãe diz-me frequentemente que eu “estou sempre bem”, que desmistifico e diminuo tudo o que sinto cada vez que falo com os meus filhos, com a minha família. É verdade, dou por mim a fazê-lo, aos meus sempre com o intuito de os proteger, às outras pessoas porque também não gosto que me tratem como uma coitadinha. 
Depois, percebi efetivamente que as pessoas, na sua generalidade, não se sentem confortáveis no apoio aos doentes oncológicos, não sabem como reagir, há pessoas que se afastam mesmo. De princípio não compreendia, hoje aceito melhor, apesar de continuar sem perceber o seu afastamento, felizmente que também conhecemos outras pessoas neste processo todo. 



Ao longo destes meses de tratamento, já conheceste muitas pessoas que estão a viver o mesmo que tu. Há alguma pessoa ou episódio concreto que te tenha marcado de forma especial? Queres partilhar?

Sim algumas, seja conhecer pessoalmente, seja virtualmente, há todo um mundo de doentes de cancro de mama que se apoiam mutuamente no espaço virtual e é muito bom, são pessoas como eu, que passam exatamente pelo que estou a passar. Tenho duas experiências que vivi e que me marcaram.U uma foi no hospital, na sala de espera , foi uma conversa tão interessante que a partir daquele dia decidi que a minha experiência podia, de alguma forma ajudar alguém. A outra experiência foi virtual, uma das minhas “irmãs” de cancro, como me trata. Uma pessoa que “conheci” depois de ter decidido usar o instagram, neste caso, como forma de ajuda a outros doentes oncológicos. 



Como é que que achas que a tua experiência pode ajudar outras pessoas?

Gostava muito que a minha experiência pudesse ajudar. Através das minhas redes sociais, principalmente no instagram, insisto muito no auto-exame da mama, no rastreio mamário (mamografia anual em mulheres acima dos 40 anos) e o exame clínico da mama, realizada por um especialista. A detecção precoce é importantíssima e pode salvar vidas.
Tento também transmitir sempre uma atitude positiva, de forma a que quem me siga consiga perceber o quão importante é termos uma atitude positiva perante a doença, o quanto essa atitude nos ajuda a viver melhor, a ser feliz. 




Agora que a tua vida profissional está temporariamente em stand by, o que mais gostas de fazer e como aproveitas os teus dias? Aí na Suíça, qual é o teu spot preferido?

Gosto muito de escrever. Uns meses depois de ter sido diagnosticada comecei a escrever. É o meu momento de catarse. O momento que exorcizo todos os meus medos e inseguranças. Tento escrever sempre que consigo, há dias em que não consigo, não quero. Aprendi a meditar, comecei com a minha mãe, quando foi ter comigo, logo no início, uma meditação orientada para a respiração, é uma das coisas que me acalma verdadeiramente. Vivo num lugar muito tranquilo, passa um rio ao lado de minha casa e o lugar que mais paz me traz é passear no meio da natureza, adoro fazer caminhadas ali, falo sozinha, falo com Deus, encontro-me. 



Se pintasses um quadro nesta fase da tua vida, o que representarias nele?

Um ponto de Luz.


✩ fim ✩

6.5.18

Project#6 | Mafalda Gomes Ferreira ✩ Menina Traquina e Mulher dos 7 Ofícios


Conheci a Mafalda, por mero acaso, no dia em que não resisti a comprar uma das muitas iguarias que confeciona e comercializa. Nunca esquecerei o deleite que senti ao provar a sua Geleia de Alecrim e foi meio caminho andado para me tornar uma fiel e assídua cliente. Com o andar da carruagem, o tempo tornou-nos amigas. Ficámos visita de casa e hoje, para mim, ela é carinhosamente a Mafarrica. 

Há umas semanas, desafiei-a para ser minha convidada neste projeto que há muito desejava retomar. A pretexto de uma visita às suas bandas, aproveitámos um dos raros dias de amena e quente primavera que tivémos até hoje e fomos a alguns lugares que lhe são especialmente queridos. 

Entre conversas e confidências perfumadas pelo doce aroma das Estevas e a Serra da Arrábida como pano de fundo, Mafalda Gomes Ferreira, é a senhora que se segue.



Sempre que penso em ti, na tua personalidade, há duas coisas em que penso logo: Azeitão e Girafas. 

Conta-me, como é a tua relação com este lugar, com esta serra (Arrábida). De que forma moldaram e moldam a tua personalidade? 

Desde que nasci, os primeiros 2 meses da minha vida foram passados aqui em Azeitão  (onde fui baptizada). Sempre aqui passei férias, durante 22 anos, na quinta da minha Mãe, a Quinta dos Foios que depois por partilhas deixou de ser nossa, e todos os fins de semana vinha cá, almoçar a casa do meu Tio António, que vivia na Quinta de São Simão. 



Esta terra é muito mais a minha terra do que Lisboa. Foi aqui que mais me diverti, foi aqui que fiz corridas por cima de telhados, foi aqui que subi às árvores, que tirei a carta de condução de bicicleta para poder andar na estrada sem apanhar multas. Foi aqui que andávamos de carro sem carta… Foi aqui que passei horas e horas dentro de água na praia, a nadar até à Anicha, a trepar o monte de areia (que já desapareceu) e a vir às cambalhotas por ele abaixo. Foi aqui que saí primeiro à noite, para os bailinhos da Cueca (como se chamavam) e depois para o Seagull. 

Trazíamos sempre imensos amigos de férias connosco, era uma diversão!



O que é que marcou mais a tua infância? 

Ter tido a liberdade de andar sozinha, desde os 5 anos, (ia sozinha para a escola) em que os meus Pais (mais a minha Mãe) me incutiram responsabilidade e me ensinaram o certo e o errado. Apesar de fazermos muitas asneiras, sempre tivemos a noção dos limites, do que era perigoso e não podíamos fazer. 

Andar à solta tanto em Lisboa como aqui em Azeitão, onde á hora que a minha Mãe nos queria em casa tocava um badalo para nos chamar. Quando aquele badalo tocava, os nossos amigos diziam: a vossa Mãe está a chamá-los, vão embora daqui, se não têm o caldo entornado! 

Ter tido uma Mãe fantástica que nos proporcionou o melhor que uma criança pode ter. Que nos deixava fazer asneiras, mas ao mesmo tempo nos obrigava a ser corretos e bem educados e a nunca faltar ao respeito às outras pessoas. Acima de tudo, nunca mentir e assumir as responsabilidades. 



E quem é que marcou mais a tua infância? 

Houve várias pessoas que, por muitos motivos, marcaram a minha infância, mas sobretudo foi um primo meu, que tinha menos um ano e que desde sempre éramos como irmãos. Mais do que irmãos! Depois do 25 Abril, antes de ele ir viver para o Brasil, nós andávamos a planear fugir porque ele não queria ir e eu não queria que ele fosse. Tínhamos a fuga toda montada, mas ficou tudo em águas de bacalhau, porque ele começou a dizer: mas como é que vamos comer? - tínhamos 6, 7 anos - coisa que a mim, nem me passava pela cabeça, aliás assim nem tinha que comer! (o meu maior suplício: a comida e as refeições). 

Por causa desse drama da comida, tinha eu uns 5 anos, o meu irmão 6 o meu primo 4 e a irmã 3, estávamos nos Foios todos de férias, e um dia a empregada deles disse assim: «Hoje o último a acabar de comer não tem um presente». Fiquei tranquila porque o meu irmão ainda era pior do que eu para comer e era sempre o último. Mas naquele dia, em vista de receber um presente, acabou primeiro do que eu. Fui a última. Eles receberam um chupa-chupa e eu recebi uma casca (cabeça) de camarão! Fui para baixo da mesa chorar! (risos)



Eras ( e és) conhecida por Mafarrica, porquê?... Não me digas que com essa cara de santa eras traquinas e fazias muitas tropelias… (rio-me)

Foi a minha Mãe que desde sempre, desde o meu um ano de idade me chamou Mafarrica e toda a família me chamava assim. Só a minha madrinha é que estava sempre a dizer à minha Mãe «não a chames assim, ela não é um diabo!»... Acho que era um diabinho (risos)



E agora sobre as girafas… Na realidade, eu associo-te muito a viagens, porque sei que é uma coisa de que gostas muito e que já viajaste bastante. E sei também que gostas particularmente de alguns destinos onde essas amigas pescoçudas habitam, mas sei que há outra história por trás do teu gosto por girafas, queres partilhar? 

Não tem uma razão específica, talvez por ter tido uma girafa que mordia, em bebé. No liceu chamavam-me girafa e identifico-me com as girafas por terem umas pernas enormes, como eu! 

E talvez por serem habitantes de África, onde assim que tiver umas boas massas, vou! Não sei, mas adoro girafas! Se pudesse metia uma girafa, no jardim lá de casa! (risos)


Fala-me das tuas viagens, por onde é que já andaste, qual foi o país ou lugar que mais gostaste de conhecer e qual é a viagem de sonho que ainda não concretizaste e gostavas de realizar? 

Sem dúvida dois sítios: Africa - Botswana, Moçambique e África do Sul - e Austrália e Nova Zelândia. 

O meu sonho, mesmo, era dar a volta ao mundo, conhecer todas as vilas e aldeias de todos os países. Ainda não ganhei o euromilhões, mas tenho esperança! (risos) 

Não viajei assim tanto. Gostei muito de Itália, estive lá 1 mês. E gostei muito de Paris, onde vivi 8 meses porque estive lá a estudar. E adorei o Peru! Matchu Pichu, sobretudo. 

Perú | Agosto 1997

Itália | Setembro 1989

Paris  | Ano letivo 1990/91 
Les ATELIERS, école nationale de créacion industrielle
Paris | Cidade Universitária - Dezembro 1990 (-17º)



És uma artista, tens alma de artista – cabeça de vento de artista!... (rio-me) - desde quando é que percebeste isso? Porque é que enveredaste por essa área profissional? 

Olha, cabeça de vento desde que me conheço, mas não percebia, tal era a distração! (risos)

Dia sim dia não, tinha que ir ao Sr. Oliveira, a mercearia da esquina, comprar qualquer coisa e quando lá chegava ele dizia assim: «Olá menina o que vem buscar hoje?» Eu pensava um bocado e dizia-lhe assim: «Não me lembro, era qualquer coisa em lata...» 

«- Talvez feijão?... Grão?... 

- Sim, é isso! Uma lata de feijão. 

- Grande ou pequena? 

(Eu como não me lembrava, pedia sempre pequena.) 

- Encarnado ou manteiga? 

(Já me tramou outra vez, pensava) É encarnada e pequena.»

Chegava a casa, levava uma descompostura: «És sempre a mesma coisa, fazes de propósito para não voltares lá, agora vais lá trocar isso. É UMA LATA DE GRÃO GRANDE!» 
O Sr. Oliveira, dizia assim à minha Mãe: «A sua filha, nunca sabe o que vem comprar, nunca vi ninguém assim.» 



Desde sempre que a única coisa que gostava de fazer eram desenhos e trabalhos manuais. Os meus trabalhos de casa e estudos eram sempre desenhar, nunca os fiz, não conseguia era mais forte que eu. 

Passava os dias a desenhar, cortar e colar. Fazia casinhas com janelas de abrir e fechar. Lá dentro desenhava frutas, legumes, flores, sei lá mais o quê! 

Depois no 9º ano, fui fazer testes para ver para o que dava e descobri que era distraída (risos)
A psicóloga perguntou-me assim: «A Mafalda é distraída?» «Não não sou». «Olhe, é tão distraída que nem dá por isso.» 
Eu todos os dias perdia qualquer coisa. O casaco, o saco da ginástica, os livros, etc. O que levava para a escola ou para casa de algum amigo, não voltava comigo. E como comecei a levar raspanetes cada vez piores, adotei uma estratégia: antes de sair de casa, contava o número de coisas que tinha (tipo: pasta+ saco+ casaco+ chapéu = 4 coisas) e antes de sair do liceu ou da escola olhava para min e contava. Só tenho 3 coisas, falta uma. E ia procurar! 



Como foi trabalhar na indústria das faianças e cerâmicas? Do que é que gostavas mais e o que menos te agradava? 

A minha vida profissional começou pela cerâmica. Foi uma experiência de vinte e tal anos. Gostei imenso de trabalhar em e com fábricas de cerâmica. De de certa maneira, fui pioneira na cerâmica utilitária Portuguesa. Era tudo muito “cinzentão” e quando entrei na fábrica Raúl da Bernarda começamos a dar alegria e cor aos serviços de mesa. A modernizar os formatos e a tornar as coisas vendáveis. Gosto imenso de ver o que desenho a sair do forno, a ser moldado e a ser pintado. É um bichinho que ficou cá dentro. 

O mais difícil de trabalhar em fábricas, foi a tentar mudar a mentalidade dos empresários, pessoas muito difíceis de se lidar. Quando o que desenhamos se vende bem – o mérito é deles. Quando se vende mal, a culpa é nossa, dos designers. 

Não ter tido um poiso certo e ter andado 20 anos com a mala às costas para a frente e para trás, foi cansativo e pouco construtivo. Não me casei, não tive filhos, não criei laços nas terras por onde andei. 

E ao fim de vinte anos fartei-me. Fartei-me de nunca pagarem os royalties; de acharem que ganhas muito porque a única coisa que fazes, são uns “bonecos” e eu a ver as fábricas Portuguesas todas a irem pelo cano apesar de tu dizeres, «tem que mudar, tem que fazer peças inovadoras e diferentes»... Consideravam os designers uns seres insignificantes dentro de uma empresa. O resultado está à vista, faliram todas! As que não faliram, estão a fazer agora a mesma coisa que lhes desenhei durante vinte anos. 



Hoje a tua vida profissional é bem diferente. Qual foi o ponto de partida para ideia da tua empresa? 

Foram as farripas de laranja com chocolate. 
Um Natal resolvi que ia fazer farripas para oferecer aos meus primos de Sintra, que estavam sempre a falar que tinham saudades das cascas de laranja que se comiam em Azeitão. 
E lá fui eu para a cozinha inventar. A minha Mãe e uma amiga minha iam provando, até que acertei. A partir daí comecei a inventar coisas que não fossem perecíveis se não as vendesse no dia e comecei a fazer coisas e meter dentro de frascos. 



Se temperasses ou aromatizasses a vida com um dos teus produtos, com qual seria e porquê? 

Seria o doce de Pimento. Porque é encarnado e porque é uma agradável surpresa! (riso)




Se houvesse um lugar que pudesse contar um segredo sobre ti, qual seria? E que segredo era, podes contar? 

Há muitos, aqui em Azeitão. Mas há um em especial, que é aqui por baixo deste moinho. Quando era miúda, passava os dias por aqui, com o meu irmão e os meus primos, a fazer de pequenos vagabundos, de sete ou de cinco. Arranjavámos cordas com roldanas, prendíamos em árvores e saltávamos. A entrar em casas abandonadas pela chaminé, etc. 

Eu e o meu primo Tiago, um dia descobrimos uma plantação de cactos e suculentas e resolvemos apanhar umas. Levamos para casa e demos à minha tia (madrinha, avó do Tiago) ela adorou e então passamos a ir lá todos os fins de semana apanhar mais. 

Um belo dia, uma senhora foi ter com a minha tia e disse-lhe: «Tem que por de castigo os seus netinhos que me andam a roubar as plantas todas que eu ando a plantar.» 

Conclusão, apanhamos um ralhete e acabaram-se as ofertas de plantas! (risos)



Se pudesses viajar numa máquina do tempo, para onde ias, para o passado ou para o futuro? Porquê? E para que momento? 

Sem dúvida para o passado. 

Para onde não sei bem, ia para várias alturas da minha vida, para fazer a mesma coisa mas de maneira diferente. 

Talvez fosse para os 19 anos, para a faculdade tirar arquitectura paisagista ou agronomia, que não fui porque o meu Pai me infernizava a cabeça dia e noite a dizer que não dava dinheiro!



✩ fim ✩