18.8.14

| O Elogio do Imprevisto

Era manhã cedo, eu a caminho do primeiro café que estava por tomar e um gato caminhava, pachorrentamente, ao lado do dono. Pelo passo e pelo pêlo, percebia-se que era um gato velho, siamês na raça, cão na alma, a contrariar a natureza que a criação lhe deu à nascença. Percebia-se que o fazia há muito tempo, percebia-se que era um ritual familiar. Um pouco mais tarde, ao segundo café, reencontrei-os e não hesitei em roubar um bocadinho daquela história. O dono confirmou. Foi o gato que sempre assim o quis. Sem trelas, nem coleiras. Em total liberdade de escolha e movimentos, pede para ir à rua. Abençoado, penso eu!

Na volta do primeiro café, na esquina de um prédio na fronteira do meu, um asiático faz Tai Chi. Movimentos leves e breves, que desenham a paz do espirito no ar. O balanço do equilíbrio. O silêncio atento da alma. Eu, a passar de carro, mal me demorei nele, mas retive. Nunca o tinha visto por ali, mas até pode ser meu vizinho. Há muitos anos que uns Macaenses têm uma fração autónoma no meu prédio. Costumavam vir uma vez por ano visitá-la, em férias. Há pouco tempo, parecem ter voltado e ter feito dela uma casa. Talvez seja um deles que, de tão discretos, ainda não aprendi a reconhecer nos breves bons dias ou boas tardes que trocamos na entrada. Fiquei com vontade de lhe fazer companhia.

Era meio de tarde e os tratores e o barco que tinha chegado da faina avistavam-se na praia. Há muitos, muitos anos, que não me cruzava com este cenário que me foi tão familiar em dias de semana, nas férias grandes de Verão, na Caparica. Estava na hora da caminhada. Aproveitei para ir apreciar o quadro.
Quilómetros de rede saiam do mar puxados pelo motor e encaminhados pelos braços fortes dos homens da arte. O povo juntava-se em redor. Formou um círculo cerrado quando as redes cheias foram depositadas no areal. O garimpo da prata enredada começou. Detive-me nos caraguejos que escapavam e juntamente com as crianças extasiadas ajudei-os a fugir da matança e a regressar a casa. Um pequeno peixe nas malhas fechadas e eu a tentar com cuidado que se furtasse à má sorte. Pedi-lhe baixinho que me ajudasse. Ficou calmo e ajudou. Foi outra criança que o levou na mão, numa correria desenfreada, para o meio das ondas.
A peixeficina continuava. As cavalas e os carapaus, frescos, frescos, a debaterem-se. Em vão. As redes eram as suas mortalhas. As caixas onde eram acomodados, os seus caixões. 
Num súbito alvoroço, muitas crianças e alguns adultos que lhes pertenciam corriam para a água com pequenos peixes. Suponho que a mão experiente dos carimpeiros dissesse que era justo devolvê-los à natureza porque a sua hora ainda era precoce. A felicidade reinava. De repente, aquelas simples pessoas, pequenas e grandes, eram omnipotentes salvadores. E ato contínuo, a desgraça voltava. As implacáveis gaivotas, ávidas dos despojos, picavam o mar em agressivos voos, mal as mãos pequeninas e grandes depositavam os corpos prateados à beira mar. E roubavam-se, furiosamente, umas às outras. 
Parei. Estaquei. O cenário, o que presenciava, a vida a acontecer e a desacontecer tão depressa perante os meus olhos, era um misto de fascínio, surpresa, espanto e dor. Houve um momento que durou uma eternidade. A surrealidade pintada sobre a minha cabeça. Dezenas, assustadoras dezenas de gaivotas pairavam sobre a minha cabeça. Planavam, como asas delta, vigilantes sobre os movimentos da praça improvisada no areal, à espera das suas desavisadas vítimas. E só eu sei, como se sobrepondo aos dois episódios peculiares da manhã, aquele momento etéreo e imprevisto me encheu a alma e o coração com uma energia inexplicável e coisas bonitas. Sei, sei que parece um exagero, mas sei que hoje, com esta história pequena, ganhei um dia extra de vida.

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