O Verão devia ser, não por imposição legal, mas por serena disciplina interior, a estação do pousio.
O tempo inteiro, todo corrido mas a demorar-se. Sem estilhaços, sem fragmentos, sem interrupções. Só nós, a sermos o que somos. Só os nossos mais perto, em direto, sem fios nem ligações que não fossem as dos braços que se estendem e as dos abraços que se dão. O azul mais indiscreto do céu. A areia nos pés. O sabor das pequenas ondas. O verde pardo de um pinhal. O canto da rola.
Como ambicioso projeto, num pequeno passo, no Verão todos deveríamos poder dispensar o telemóvel. Desligar a internet. Não ter medo de perder o imediato. Abrir os braços ao incerto.
Um extenso areal semeado pela maré vazia. As pequenas grandes piscinas que a baixa-mar desenha. As crianças que as vêm habitar em sonoras brincadeiras. Penso e acredito que, à semelhança do que se passa com a televisão a maior parte do tempo, não precisaria de telemóvel para nada. Que o levo apenas comigo porque tenho uma filha e que depois de sermos pais e mães nunca mais nos podemos permitir não estar contactáveis... ato contínuo, sorrio. Os nossos pais não tiveram telemóveis e se algum de nós, na infância, se sentiu desprotegido não foi seguramente por essa ausência, mas pela de afetos. Não havia telemóveis e todos nós sobrevivemos e bem. Aprendemos com essas e outras ausências que a vida é feita de soluções que se encontram a cada momento. Um dia, na beira alta, eu pequenina, o nosso carro ficou sem gasolina. Anoitecia. Estávamos no meio de um pinhal, numa estrada longe de povoações. Não se viam casas nem viva alma. Algum tempo depois, passou um homem numa motorizada. O meu pai fez-lhe sinal, o homem abrandou e depois de saber do que se tratava, deu-lhe boleia. Eu e a minha mãe ficámos a vê-lo ir. Não sabíamos quanto tempo demorava, nem quem era o homem que lhe dava boleia. Se o traria de volta. Podiam ter um acidente. Ao longe, andava um fogo... O meu pai voltou. O carro andou e hoje tenho esta pequena história feita de um medo pequeno que guardo como uma grande história sobre a vida tal como ela é. Sem rede.
Hoje parece que não sabemos nada sobre isso, que desaprendemos que nada nesta vida se controla e muito menos à distância. Empobrecemos. Regredimos.
Entretanto, uma mão cheia de caranguejos ermitas vai passeando embalada pelas suaves oscilações das pequenas ondas que invadem a piscina de sal onde parei. Um grande, o maior de todos, o rei, a andar depressa. Pego-lhe, brinco com ele segurando-lhe com cuidado. Recolhe. Mergulho-o para que reapareça. Quando o faz timidamente, faço-lhe festas nas pinças. Recolhe novamente. O caranguejo ermita não sabe nada de festas, não sabe o que simbolizam. E provavelmente tem razões de sobra para acreditar que seres da minha espécie não fazem festas aos da sua. Devolvo-o ao seu caminho. Desejo que mais ninguém o veja. Que a curiosidade ou a maldade não o atropelem. Desejo-lhe boa sorte. Mais à frente, são vários os cardumes de pequenas linhas prateadas que se evadem à proximidade dos meus passos. Eu a pensar que a primeira projeção profissional que tive, era tão pequenina, era ser uma daquelas pessoas que faziam o programa d' O Homem e a Terra - o percursor do National Geographic. E eu não sabia nada do que era uma profissão nem que aquilo era uma profissão. Para mim aquilo era uma aventura e uma paixão. Era estar no meio dos bichos, observá-los, conhecê-los, tê-los perto, nem que fosse através de uma curiosa e atenta lente. Anos mais tarde, acabei por descobrir que isso para mim era o sinónimo de profissão, embora a definição não constasse em manual nenhum e menos ainda na lei laboral. Assim como assim, dediquei-me mais à investigação sobre o bicho homem.
Falam por si, as estatísticas. No Verão há mais casamentos, há mais divórcios, há mais reconciliações. Há mais bebés a serem sonhados e desejados e mais crianças a serem concebidas. No Verão as crianças crescem mais. E, ao contrário do que algumas pessoas pensam, no fim do Verão, no regresso a casa, à escola, as crianças gostam que se lhes diga estás tão crescido! estás tão crescida! Sobretudo quando é verdade. E quando somos crianças sabemos sempre quando nos dizem a verdade. Só muitos anos mais tarde começam as dúvidas. No Verão as crianças crescem mais. Todas as crianças crescem mais. Até as institucionalizadas. No Verão temos mais liberdade, saímos mais, mesmo sem nos darmos conta, da zona de conforto. No Verão temos mais pele. É por isso que no Verão até as crianças institucionalizadas crescem mais. No Verão, todas as crianças são, ficam, mais iguais, porque os pais passam a ter um bocadinho menos de importância. Há a liberdade, a ausência de rotinas, todas as coisas diferentes e um mundo por descobrir. O ar, o sol, o mar, o campo abraça-os e até estes meninos crescem melhor porque o Verão os enche de afetos. No Verão, o calor substitui, mesmo sem nos darmos conta, uma boa parte do que nos falta no resto do ano.
No Verão devíamos, não por imposição legal mas por serena disciplina interior, ser obrigados a perder-nos. A perder-nos no que nos rodeia. A mergulhar mais fundo em nós. No que está perto. No que está ao alcance de um toque, de um olhar, de um cheiro, de um sabor. O Verão devia chamar-se a estação dos perdidos e achados. Porque muitas vezes - tantas vezes - só perdendo nos encontramos. Como os tesouros que o mar perde para nós acharmos.
E no fim, esta certeza em mim, que não depende de estação. A de que, para além do tempo que dedicamos ao amor dos que amamos e que nos amam, o tempo mais produtivo, o mais bem empregue de todos, é aquele que se detêm naquilo que há milhares de anos nos rodeia. Para além destas duas chaves, não há nenhuma outra que abra verdadeiramente a porta para a condição humana. Tudo o resto, acho eu, é ilusão.
Preciso urgentemente de reencontrar com o verão...
ResponderEliminar"Diz" que este fim de semana vai ser bom para isso, Maria Carmim! ;)
EliminarVenho aqui, leio e não comento. Mas hoje... hoje revejo-me tanto, mas tanto, que não pude passar incógnita. É isso mais a melancolia de os ver crescer a cada Verão e tentar abarcar todos os momentos sabendo que não se repetirão. Vivê-los ao máximo! Obrigada.
ResponderEliminarGisela, muito obrigada por desta vez ter deixado as suas palavras. É também disto, desta partilha de olhares e identidades, que vive este espaço. Sinta-se sempre em casa :)
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